quarta-feira, 19 de maio de 2010

Meio Sol Amarelo de Chimamanda Adichie

Nada conheço de África.
Leio alguns escritores africanos cuja língua é o Português. Leio notícias, vejo reportagens, fotografias. Conheço relatos de guerras, massacres, secas, fome e morte ( principalmente através das palavras bem intencionadas de europeus ).
Também recordo algumas campanhas, sempre acompanhadas de belas canções, para ajudar crianças, populações famintas do país X ou Y, algures em África.
Comprei o livro de Adichie após ter visionado o discurso que fez sobre " o perigo da história única".
Ainda bem.
Adichie é uma belíssima escritora nigeriana. A sua história acompanha o tempo trágico da guerra do Biafra através de personagens cuja realidade não é " folclórica ", mas humana, universalmente humana.
E, como diz o europeu que se apaixona por uma mulher nigeriana e pela causa do Biafra ( paixões inseparáveis ): " Não sou eu que devo contar a história desta guerra.".
Adichie conta o amor, o entusiasmo, a violência, o medo, a morte, a coragem e a cobardia. As suas personagens vivem num tempo que as obriga a sobreviver no cenário de horror de uma guerra, que poderia ser qualquer guerra.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Sou filha e mãe

Poema à Mãe


No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"

sábado, 1 de maio de 2010

Etty Hillesum, Diário

Sábado à noite [ 10 de Outubro de 1942 ]

Creio poder suportar e interiorizar, tudo desta vida e desta época. E se a exaltação for demasiado grande, e se eu não souber mais encontrar solução para ela, nesse caso ainda me restam duas mãos juntas e um joelho dobrado. É um gesto que não nos foi transmitido a nós judeus, de geração em geração. Aprendi-o com dificuldade. É o legado mais precioso do homem cujo nome já quase esqueci, mas cuja melhor parte eu continuo a viver.
Como essa foi na realidade uma história estranha da minha parte: essa da rapariga que não conseguia ajoelhar-se. Ou, com uma variante: a da rapariga que aprendeu a rezar. É o meu gesto mais íntimo, mais íntimo do que os que tenho ao estar junta com um homem. No fim de contas, uma pessoa não pode derramar todo o seu amor sobre uma mesma pessoa, pois não?