sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Encontros

Não queria deixar 2010 sem escrever algumas palavras para agradecer dois encontros insólitos : o senhor Chico e a senhora L. .
Ao senhor Chico, conheci-o numa catedral de enganos e esquecimento. Falava comigo como se fosse uma estrela caída e agonizante olhando para uma estrela no céu. Partilhávamos uma impotência e um desespero idênticos, presos num espaço oco, sem ressonância. Em cada conversa, teve a generosidade de fazer-me sentir a única flor num lamaçal sem contornos possíveis. Despedia-se sempre com emoção dizendo :
" Amanhã não voltará aqui e ficarei feliz."
Um dia não voltei e acredito que tenha ficado feliz.
A senhora L. vive mesmo ao meu lado. Olhava para ela sem a ver, sempre educada e distante.
Um dia, o seu coração salvou-me, sem hesitação nem medo.
Nunca negociou o preço do coração.
Esta irmã que desconhecia, contagia-me com a sua alegria e coragem todos os dias, mesmo que seja só numa esplanada deserta, por vezes debaixo de chuva, com um café e um cigarro.

Bom Ano Novo para todos.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Lágrimas

Há dias, uma mulher cansada, já marcada pela vida, parecida com tantas outras aproximou-se devagar da mesa que ocupava numa esplanada e, sem controlar um choro miúdo e constante, pediu-me lume .
Começou a dizer baixinho que os seus queridos filhos recebiam pontapés do pai e acabavam batendo com a cabeça na parede cada vez que queriam aproximar-se para lhe dar um carinho.
O seu choro era mais intenso quando repetia que os meninos nunca tinham dito nada, até agora, já homens, para não causar tristeza na mãe. Por fim, de maneira quase inaudível, confessou que esse pai era o seu marido há trinta e cinco anos, agora com uma doença degenerativa que o prendia à cama. O carrasco dos filhos dependia dos seus cuidados constantes e ela tratava-o com o amor que sentira por ele ao longo de tantos anos.
A mulher não queria respostas nem consolo.
Acabou o cigarro, pediu desculpa pelas lágrimas e foi-se embora.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Vai acontecendo

Poderia a qualquer momento desistir, desistir de coisas, de ideias, de vontades até mesmo de sentimentos, mas não consigo desistir de pessoas. Talvez seja esta dependência que tenha permitido que o centro da dor nunca fosse exclusivamente um eu imaturo e sofredor, mas outros tantos que, apesar de tudo, transformam-me sempre numa pessoa capaz de conviver com todas as outras em mim.

Afinal, falando com todas, sinto ridícula a dor de uma ou relativa a frustração de outra.

No entanto, por vezes, todas as vozes se confundem e fico paralisada e muda, tentando não perder nada desta conversa impossível.

Sei que sou tudo isso, apesar de não poder viver assim. E não consigo desistir de nenhuma das vozes que falam em mim. Com o tempo, tudo parece mais confuso, ao contrário do que sempre me disseram.

Tão pouco encontro sentido nisto.

Aliás o único sentido que alguma vez encontrei, foi o de transformar a vontade em acção e de perder-me até ao ponto da acção transformar-se em vontade, e assim esvaziar-me de energia e deixar-me esgotada e vazia.

E só existe o que se faz.

Pensar que sou tudo o que faço, tem-me deixado muito irritada comigo. Por vezes, só por uma questão estética, por vezes ética e, por vezes, para ser sincera, isso também se confunde.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Acordar

Acordar com a luz parda da madrugada
Sem estrelas nem pássaros
Afinal é só um acordar
Sem festa
Imaginava cores de sonho, borboletas doidas
Vejo nuvens pesadas
Acordei de olhos fechados
O filme já acabou
Custa tanto acender a luz no quarto escuro
Basta acordar
Para sentir o peso lento
De um gesto
Repetido a contra-gosto.

terça-feira, 20 de julho de 2010

o remorso de baltazar serapião de valter hugo mãe

Primeiro, o desaparecimento das maiúculas e da pontuação emotiva : por um lado, diz o autor, tem a ver com ele ( com maiúsculas o texto não lhe soa autêntico), por outro lado tem a ver com o ritmo do discurso coloquial. Pronto e ponto de exclamação, porque o autor também perde a paciência.
Agora a história: os Serapião são uma raça amaldiçoada que extermina com requintes de malvadez as fêmeas da família para educá-las e lavar a sua honra. As excepções são a vaca, figura materna e fundadora da família, e o filho mais novo cuja inocência do coração se reflecte na arte de reproduzir a beleza para além da realidade.
Um pouco "Crime e Castigo", um pouco "Otelo" mergulhados num universo medieval (?) onde a realidade exacerbada e a fantasia criam um mundo cruel e delirante cuja escapatória é inevitavelmente a morte.
Aqui coabitam homens e animais, bruxas e feitiços, inferno e sexualidade.
O sofrimento é constante e devastador e Baltazar Serapião não encontrará descanso nem neste, nem em nenhum mundo.

sábado, 3 de julho de 2010

Acontece

Por vezes estamos quietos, calados, esquecidos de tudo.
O corpo faz-se praia balançada pelas ondas , acabando por ser água fugindo entre dedos trémulos. Mas o tremor vem do mar e a força chega distante, segura, incontrolável. A força transforma o espaço, desfaz correntes, solta gritos de vitória.
E um momento de ausência cria laços com o mundo.
Por vezes, quieta nos braços da noite, sinto o mar fazer-se carne e a água derrotar o meu silêncio mais profundo.

domingo, 27 de junho de 2010

SIM/NÃO

Sim, agarraria a tua mão desaparecida

Sim, procuraria a tua boca já distante

Sim, por ti faria a loucura parecer tranquila

E a dor ter a cor do beijo

Sim, por ti imaginaria uma história bonita

Que acabaria onde as outras começam

Sim, acomodo os meus braços ao vazio

Aconchego o coração nas nuvens da noite fria

Sim, digo que sim

Para ouvir em mim o teu eco.

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Não, não ficarei feliz quando partires

Não, não saberei mudar o choro em riso

Nem a dor em esperança

Não, não saberei cuidar de mim

Não saberei se o amor vive sem os beijos

Não, não sentirei o teu coração bater comigo

Não poderei preencher o vazio dos meus braços

Com palavras sensatas e distantes

E o não

Como farei para apagar a sombra

Desta palavra que cresce, se arrasta

Trazendo consigo rimas

( e eu que não gosto de rimas)

Que ficarão esperando ( solidão? Rejeição?)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Depois de morrer aconteceram -me muitas coisas de Ricardo Adolfo

Este novo escritor ( novo porque não o conhecia e novo porque não é velho, pelo menos pelo ano de nascimento) merece toda a nossa atenção. Com uma voz e um estilo muito próprios, narra neste livro o isolamento dos muitos "transparentes" do século XXI, nos países ricos : os imigrantes ilegais.
A sua narrativa não é melodramática, mas, pelo contrário, deliciosamente irónica e, quase cómica.
Os malentendidos, as barreiras linguísticas, o isolamento interior transformam o quotidiano numa epopeia negra com consequências imprevisíveis e absurdas. É um romance negro de circunstâncias banais. Acompanhamos as desventuras desta família ( pais e filho ) durante vinte e quatro horas, decisivas para a sua existência, através da visão interior do pai que tenta entender e adaptar-se ao que o rodeia. Na impossibilidade de controlar os acontecimentos, improvisa discussões éticas, religiosas e pragmáticas consigo mesmo num diálogo interior que torna simpática esta personagem desprovida de qualquer dimensão heróica. Não entende os outros, não tem qualquer liberdade de alterar o curso das circunstâncias, mas não desiste, continua incansavelmente a reagir a tudo o que o rodeia guiado pela sua leitura deficiente e limitada ( não serão assim todas?) da realidade.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Desistência

Para aqueles que seguem este blog, que eu saiba só um leitor ( mas muito atento),a permanência há meses de 2666 na rubrica Os livros que estou a ler , deve causar alguma admiração ou curiosidade em relação ao livro ou à leitora.
Vou esclarecer qualquer dúvida : o livro está abandonado, esquecido no meio de outros que vou lendo. Não sei se o abandono é definitivo ou passageiro, mas prefiro apagar o seu título.E a verdade é que não me apetece ler esse livro cujas primeiras 400 páginas já percorri : a viagem foi longa ( e não saiu do mesmo sítio).

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A Cidade da Alegria de Dominique Lapierre

Iniciei a leitura deste livro com alguma relutância. Ficcionar a miséria e a luta pela sobrevivência, não me parecia a melhor perspectiva para abordar um tema tão chocante, principalmente do ponto de vista ocidental. Sempre considerei, talvez erradamente, que a abordagem das terríveis catástrofes que vitimam as populações mais desfavorecidas era mais destinada a aliviar a consciência dos que vivem na abundância e no desperdício do que os males das populações que vivem e morrem sem esperança de alterar o curso das suas vidas.
No entanto, este relato de experiências frágeis e insignificantes, num mundo de carências e necessidades de toda a ordem, cativou-me.
O bairro da lata mais pobre de Calcutá e os seus habitantes, esquecidos e transparentes aos olhos dos que não partilham o seu destino, transfigura-se num universo onde quem nada tem luta todos os dias por um dia mais. Um universo onde quem quer aliviar um pouco todo este sofrimento tem de aceitar modestamente que nada pode fazer salvo estender ao seu vizinho uma mão caridosa ou dirigir-lhe uma palavra amiga.
O único milagre realizado pelo padre e o médico que partilham o dia-a-dia desta " Cidade da Alegria" é terem visto pessoas onde os outros vêem "gado" para todo o serviço.Devolver o nome próprio a cada pessoa é devolver-lhe a dignidade, até mesmo nas condições mais "desumanas" .O padre rezava por cada um , qualquer que fosse a sua religião, e todos aceitavam as suas preces como um bâlsamo divino.
Como dizia Madre Teresa de Calcutá que se dedicou aos que eram menos que nada, os leprosos,os que nem neste bairro da lata tinham lugar : " Tudo isto é uma gota num oceano, mas o oceano precisa de cada gota."
.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Meio Sol Amarelo de Chimamanda Adichie

Nada conheço de África.
Leio alguns escritores africanos cuja língua é o Português. Leio notícias, vejo reportagens, fotografias. Conheço relatos de guerras, massacres, secas, fome e morte ( principalmente através das palavras bem intencionadas de europeus ).
Também recordo algumas campanhas, sempre acompanhadas de belas canções, para ajudar crianças, populações famintas do país X ou Y, algures em África.
Comprei o livro de Adichie após ter visionado o discurso que fez sobre " o perigo da história única".
Ainda bem.
Adichie é uma belíssima escritora nigeriana. A sua história acompanha o tempo trágico da guerra do Biafra através de personagens cuja realidade não é " folclórica ", mas humana, universalmente humana.
E, como diz o europeu que se apaixona por uma mulher nigeriana e pela causa do Biafra ( paixões inseparáveis ): " Não sou eu que devo contar a história desta guerra.".
Adichie conta o amor, o entusiasmo, a violência, o medo, a morte, a coragem e a cobardia. As suas personagens vivem num tempo que as obriga a sobreviver no cenário de horror de uma guerra, que poderia ser qualquer guerra.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Sou filha e mãe

Poema à Mãe


No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"

sábado, 1 de maio de 2010

Etty Hillesum, Diário

Sábado à noite [ 10 de Outubro de 1942 ]

Creio poder suportar e interiorizar, tudo desta vida e desta época. E se a exaltação for demasiado grande, e se eu não souber mais encontrar solução para ela, nesse caso ainda me restam duas mãos juntas e um joelho dobrado. É um gesto que não nos foi transmitido a nós judeus, de geração em geração. Aprendi-o com dificuldade. É o legado mais precioso do homem cujo nome já quase esqueci, mas cuja melhor parte eu continuo a viver.
Como essa foi na realidade uma história estranha da minha parte: essa da rapariga que não conseguia ajoelhar-se. Ou, com uma variante: a da rapariga que aprendeu a rezar. É o meu gesto mais íntimo, mais íntimo do que os que tenho ao estar junta com um homem. No fim de contas, uma pessoa não pode derramar todo o seu amor sobre uma mesma pessoa, pois não?

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Aforismos

Tenho um carinho muito especial pelos aforismos.
São elegantes, vistosos e completamente inúteis.
Os de Oscar Wilde são brilhantes, contundentes e ..... perfeitamente inúteis:

" Há apenas um tipo de comunidade que pensa mais em dinheiro do que os ricos: os pobres. Os pobres não conseguem pensar em mais nada."

" A coerência é a virtude dos imbecis."

" O homem que vê os dois lados de uma questão é um homem que não vê absolutamente nada."

Não quero deixar de registar aqui o meu modesto contributo para este exercício, que,obviamente, padece dos atributos atrás referidos:

" O melhor caminho para não chegar a lado nenhum, é seguir o caminho dos outros. O pior caminho para não chegar a lado nenhum, é seguir o seu caminho."

domingo, 18 de abril de 2010

Sem título

Entre palavras vou conhecendo o mundo
E tu,
És o mundo
Entre o teu corpo e o meu, um mundo
Entras e sais, deixas marcas
Choro contigo, rio contigo, e canto sem saber cantar
Entre palavras vais conhecendo o mundo
O quarto não tem janelas nem portas
Nem sempre está onde estou,
É maior
Cheiras a flor
E o quarto é campo
Sabes a sal
E o quarto é mar.

Para a minha filha, Mariana, 1993

sábado, 17 de abril de 2010

Começar não é fácil

" Flor do Campo " é tudo o que, não tendo nome, me comove e tudo o que, tendo nome, me faz sonhar.